terça-feira, 7 de agosto de 2012

O GATO SIAMÊS

Aos oito anos de idade, Josiane, ganhou de sua madrinha de batismo o primeiro gato, dos inúmeros que teve pela sua vida. Alguns ela ganhou; outros, ela comprou e teve vários que recolheu das ruas e vielas da cidade onde nasceu, cresceu e morreu. Sempre foi aficionada por felinos. A primeira vez em que foi assistir a uma apresentação do Circo Trombeta levada pelos seus pais (tinha sete anos), se emocionou a ponto de verter lágrimas quando deu entrada no picadeiro uma jaula conduzida por 4 rapazes, abrigando um leão. À medida que o domador extraía do infeliz felino números de acrobacia acompanhados de urros ( de dor, pelas inúmeras chicotadas), ela se debulhou em um choro condoído, a ponto de seu pai exclamar: “ Josi, o circo não é lugar de choro e sim, de dar risadas...” O que seu pai não sabia é de que ela sofria também no corpinho as terríveis vergastadas. Se pudesse, comentou mais tarde com sua mãe, daria o troco no domador, pra ele ver o que era bom. Assim, pela infância e adolescência e até chegar à maturidade plena, conviveu, com amor, ternura e compreensão férrea, com dezenas de bichanos, não importando a raça, a cor e o estado físico; importava sim, dar a eles um lugar para morar e o seu imenso amor... Um amor inconteste que a levou...

Bem, deve estar perguntando o leitor: Que a levou a quê?; e daí?...

E, daí, que um dia, mais precisamente, uma noite em que voltava de um baile a pé; já que seu namorado estava sem carro e a fez vir de circular e que parou um ponto antes de sua casa (dois quarteirões), ela ao dobrar uma esquina escutou miados agoniados; miados de um felino que estava sofrendo dores atrozes motivadas ou pela fome; ou pelo frio, ou por outro elemento da natureza... Os débeis gemidos não deixavam outra interpretação. Curiosa e já condoída pela dor expressada nos miados, mais que depressa se aventurou pela escuridão da viela e se embrenhou nas sombras dos casarões à procura do infeliz bichano. Andando curvada, em ziguezague e, pisando, com cuidado, nas seculares pedras do calçamento, ela se deparou com uma lata de lixo caída no meio fio e pôde verificar que de dentro dela procediam os doídos miados. Mais que depressa, atendendo os apelos do seu coração enfiou as mãos delicadas no fundo da lata e trouxe para si um mirrado gatinho; um gatinho SIAMÊS. Desnecessário será falar de sua imensa alegria ao ter no colo, agora, protegido das intempéries da noite e aquecido no calor do seu corpo o infeliz felino, que logo mais estaria desfrutando de suas benesses: uma casinha forrada de cetim com acolchoado e ao lado uma terrina cheia de leite quente e perfumado. Sim, a sorte do gatinho Siamês, passou a mudar a partir daquele feliz encontro com sua dona e excelsa protetora. De, um pária, abandonado numa lata de lixo por mãos impiedosas, para um príncipe, cuidado a partir de então por mãos caridosas e perfumadas. Se pudesse se expressar como os humanos, certamente, diria: “ Ah!, como a vida é boa para mim! Há pouco tempo estava na pior; era um mendigo à espera da morte e, no entanto, hoje, desfruto da maior mordomia... Graças à minha bela mulher e protetora abnegada... Nunca a abandonarei e nem permitirei que ela me abandone... Ela, hoje e sempre, fará parte do meu destino e, eu, do seu destino.”

Josiane tinha 23 anos quando levou para sua casa o gatinho siamês. Ele, devia ter, no máximo, 5 meses, embora, pelos maus tratos que tinha passado, apresentasse bem menos. Para Josiane o achado foi incrível. Com um sorriso amplo no rosto chegou em sua casa e mais que depressa foi cuidar do bichano. Deu-lhe um banho com sais aromáticos e depois o serviu com uma tigela de leite espumoso e quente. Em seguida, levou-o para dormir em sua cama. Nesta noite, ela foi obrigada a dormir encolhida, visto que sua cama era de solteiro e ela não queria de jeito nenhum machucar a pobre criaturinha. Lá pelas tantas da noite ela acordou e pôde verificar, extasiada, que o seu filhinho (passou a pensar assim) estava em segurança e de que dormia o sono justo dos inocentes... (INOCENTE?).

E, assim, se passaram os dias, os meses e os anos.

Josiane, agora, com 32 anos, madura e experiente, morava só, num apartamento no 7º andar de um edifício no centro da cidade. De dia trabalhava como vendedora de seguros e à noite gostava de ficar em casa assistindo televisão, tricotando e, principalmente, curtindo o seu belo, robusto e carinhoso gato SIAMÊS, que ela chamava carinhosamente de ÁTILA.

Átila, pelo excesso de atenção de Josiane, transformou-se de um mirrado filhote para um felino de proporções gigantescas para a sua raça. Pesava na época dos fatos, uns10 kg; tinha os pelos espessos e macios; garras aduncas e afiadas e dentes extremamente perfurantes: próprios dos carnívoros. O que o marcava profundamente era a sua personalidade; dono de um instinto possessivo, não permitia de que ninguém se afeiçoasse à sua dona. Inúmera vez mostrou-se altamente agressivo frente aos poucos namorados de Josiane; com rosnados roucos e profundos ameaçava os pretendentes da bela moça. Alguns, não davam tanta importância; já, outros, sentindo-se ameaçados, desistiam dos projetos amorosos e davam no pé; para tristeza de Josi e felicidade do Átila. Este comportamento do seu bichano já a estava deixando encasquetada.

Uma tarde, em que ela passeava pelo Shopping, despreocupadamente, tropeçou num belo moço. Entre desculpas e perdões, pintou entre eles um clima amigável, a ponto do jovem convidá-la para tomar um chope logo mais, à noite. E, foi o que aconteceu.

Conversa vai, conversa vem, e nasceu entre eles o início de um romance. Com o passar do tempo, Abelardo se tornou frequentador assíduo do apartamento da rua Carolina Bitencourt, nº 33. Toda vez que ele chegava ao apê, Átila vinha recebê-lo. Invariavelmente, com mau humor. Nunca, em hipótese alguma, enroscou-se nas pernas do moço, como é comum aos gatos procederem, quando gostam de alguém. Assim, que o jovem se instalava no sofá, ele, de um salto espetacular, ocupava o lugar mais alto da estante e daí, fica tomando conta dos dois. Se acontecia um carinho ou carícia mais ousada, imediatamente, ele passava a ronronar com ferocidade. Por diversas vezes, Josi, tentou tirá-lo da sala, mas, em vão. Quanto mais ela tentava afastá-lo, mais ele se tornava agressivo, a ponto do jovem apaixonado fazer menção de lhe atirar um objeto qualquer; um modo de intimidá-lo. A situação estava se tornando insustentável.

Uma noite, após degustarem uma garrafa de um excelente “bordeaux”, e, ao sentirem –se leves e atordoados foram para a cama (primeira vez). Talvez, o vinho tenha sido a “gota” que faltava para o transbordamento da taça do amor: em instantes, estavam nus; se entrelaçando nos liames dos desejos liberados. Os “ais” contidos em diversos momentos de carícias, agora, soltos, ecoaram pelo quarto e demais dependências do aconchegante “apê” e chegaram até os ouvidos requintados do felino, que, impaciente, ronronava, mostrando o seu descontentamento com o que se passava no interior do quarto. E, a desgraça, aconteceu num repente. Pelo vão da porta entreaberta, Àtila entrou sorrateiro. Com o movimento ondular dos quadris, próprios dos da sua raça, foi adentrando no recinto, sem despertar a mínima suspeita no casal de amantes, que num corpo uno, gemiam e gozavam o momento inaudito. Átila se preparou para o ataque. Com um salto espetacular logrou cair sobre as costas nuas do feliz amante cravando-lhe as unhas com furou, para em seguida mordê-lo na base da nuca. Tudo aconteceu num átimo de segundo, não permitindo qualquer reação do infeliz ( agora) amante.Tendo concluído o seu ataque de ódio, Átila, se desvencilhou do lençol que Josi jogou sobre ele e saiu em disparada para o seu esconderijo no patamar mais alto da estante da sala.

Ensanguentado, extenuado e ferido, Abelardo foi levado por sua namorada até o Pronto Socorro Municipal onde recebeu os primeiros socorros, incluindo injeções contra a raiva animal. A sua recuperação foi lenta e complicada. As injeções contra a “raiva” lhe causaram sérios transtornos. Durante o tratamento Josi esteve sempre ao seu lado, indo diariamente em sua casa, visto que ele jurou nunca mais retornar em seu “apê” , enquanto o maldito gato lá permanecesse. O problema a partir desta afirmação se instalou na vida de Josi. O que fazer?, perguntava aos seus botões: Desfazer do Átila e ficar com o namorado, ou, desfazer do namorado e ficar com o Átila... Por noites e noites ficou em vigília esperando que Deus a iluminasse. Por incrível que possa parecer, quem apresentou ou criou a solução para tão terrível impasse foi o próprio bichano. Desde a agressão que cometeu, Átila, passou a viver retraído. Invariavelmente, ficava deitado nos lugares mais inacessíveis da casa. Retraído, agora, não se deixava mais ser acariciado pela dona. Para se alimentar esperava que ela saísse e quando escutava o baque da porta sendo fechada é que ele punha a cara fora dos seus esconderijos e ia sorrateiramente até as tigelas se fartar do leite ou da ração. Pode-se afirmar sem medo de errar de que ele tinha consciência da gravidade do ato cometido e, com a desconfiança própria dos felinos mantinha-se o mais distante possível da doce Josi. Porém, a situação, antes de se amainar, estava se tornando insustentável. Por diversas vezes, Josi, pensou em dar o gato a quem o quisesse. Para ele, que não era bobo, nem nada, já tinha entendido de que não era mais o predileto; o queridinho da sua dona. E, assim, um clima de contenda se instalou entre os dois. Já, Abelardo, mantinha-se afastado do lar onde um “terrível felino” ( assim se referia ao Átila) morava, deixando a sua bela namorada em estado permanente de insatisfação. O desenlace do impasse ( mortal para Josi) se deu quando uma amiga de Josi foi até o seu “apê” para visita-la. Após o café, Josi perguntou-lhe, à queima-roupa: “ Querida amiga, por acaso você não gostaria de ganhar de presente o meu gato, o Átila... Você mora numa chácara e lá é o lugar ideal para ele... Aqui no “apê” é muito apertado e ele não está se sentindo bem...” Quando ainda estava falando das ótimas qualidades do seu bichano, notou, entre olhos, de que ele se afastou da sala e foi para a varanda, ronronando baixinho e agressivamente. Dando saltinhos de alegria, sua amiga, concordou em receber tão inusitado presente e disse que viria no sábado, sem falta, buscá-lo. Era sexta feira. O tempo urgia. Á noite, Josi, separou tudo o que era do Átila: a cama; as tigelas; as roupas de frio; as fitas ( guardou só a do Corintians) enfim, tudo o que pertencia ao gato SIAMÊS.

Aliviada, pela decisão tomada e. sabendo de que assim que o gato fosse embora, o seu namorado voltaria a frequentar a sua casa, arrumou-se para dormir, vestindo uma camisola vermelha. No aparador do quarto, maquiou-se, como antes fazia para receber o jovem enamorado. Por último, prendeu os longos cabelos sobre a cabeça num simples coque e dirigiu-se para a cama macia e perfumada... Quando...

Quando ouviu um miado agoniado vindo da sacada do “apê”. Imediatamente, dirigiu-se até lá, quando, estupefata, contemplou o Átila pendurado nas grades por uma só pata; balançando no ar, dando a impressão de que cairia a qualquer momento. Sem raciocinar, num ímpeto, ela se projetou até a grade e se debruçou para resgatá-lo, apoiando somente uma das mãos no gradil, enquanto com a outra tentava soergue-lo. Foi então ao olhar nos olhos dele, que teve consciência do perigo que estava correndo. Seus olhos faiscavam como duas brasas na noite escura. De sua candura, nada mais restava. Para ela, ele tinha se transformado no satã. O ódio estava estampado em sua cara. Os bigodes finos se moviam como látegos em sua mão. De repente, de um salto acrobático ele se desvencilhou da mão que o agarrava na tentativa de salvá-lo e se projetou para a mão que segurava o ferro frio. Tudo ocorreu num átimo: com mordidas raivosas ele obrigou a pobre moça a soltar-se do gradil e por conseguinte a mergulhar no abismo insondável da noite escura de encontro à morte. O último gesto que ela fez antes de projetar-se no vazio foi segurá-lo com uma força hercúlea arrastando-o consigo: sua vingança.

Dois corpos estatelaram-se no chão duro de cimento do estacionamento. O sangue, vermelho e quente, brotou dos corpos e se espalhou pelo piso frio e inerte.

Uma jovem de cabelos esvoaçantes e ar sonhador foi a primeira que chegou no local. Dando gritinhos de assombro ela se abaixou e pôde constatar que os dois ainda viviam. Piedosamente ela colou o ouvido na boca da infeliz Josi que balbuciava, ou, tentava balbuciar algumas palavras. Com muito custo ela ouviu da moribunda alguns fiapos de palavras, que contou mais tarde ao Delegado de Polícia e que são: “ O gato... o gato... ele é um demo... Não o deixe vi... Estou morrendo... Ele é o culpa... E, morreu. Com muita força a jovem conseguiu soltar a mão da infeliz Josi que segurava o pescoço do Átila, como se o estivesse estrangulando.

Catarina, este é o seu nome, soltou o gato e condoída levou-o para a clínica veterinária. Oito dias se passaram e o gato SIAMÊS, (antes, Átila), agora, Sófocles, já restabelecido das feridas, vive como um nababo na sua nova casa.

- Sófocles, saia de cima do sofá e venha conhecer o meu novo namorado...

_ Rooooommmm....Rooooommmm... Roooommmmm....

Um comentário:

  1. Parabéns pelo conto ,muito bom mesmo, é tão real, que ao lê-lo é impossivel não sentir um desejo voluptuoso de............"matar o gatinho".

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