segunda-feira, 15 de outubro de 2012


UM SURTO CANINO




A tarde estava maravilhosa. Bento Palhares, como sempre, aproveitava o tempo livre, visto que, a dedicada patroa tinha ido ao Shoping com sua amiga inestimável Heloísa para fuxicar as lojas: sempre encontravam algo para comprar, ou, se não comprar, pelo menos para fazer de conta _  para ele se deleitar e se esparramar no sofá e curtir o futebol das tardes de domingo. Era sagrado estar sozinho e vibrar com palavrões que vociferava dentre as jogadas do seu time de coração: o Corinthians. Bom, nesta tarde tudo estava transcorrendo dentro da normalidade: as cervejas suando no congelador; o prato de tira-gosto na mesinha central; as calças jogadas a esmo sobre o grosso tapete; a porta trancada (por fora, a consorte esqueceu de deixar as chaves); o canal de transmissão do jogo sem uma única sombra (LCD impecável de 42 polegadas), enfim, estava instalado para assistir o jogo como um paxá. E, o juiz deu o apito inicial e o jogo começou e, no mesmo instante, começou um cachorro a latir desvairadamente em algum apartamento superior (o prédio tem 12 andares). A princípio, Palhares não se incomodou, pois, pensou: é questão de minutos e o cãozito ( no prédio só tinha cães de madame) fecha a goela. E, o jogo continuou indiferente aos ganidos, agora, já irritantes do fudido – primeiro palavrão que lhe veio à boca cheia de salaminho. Num gesto natural, Palhares, colocou uma almofada sobre o lado exposto da cabeça, tentando assim, amenizar os latidos que ecoavam pela sala como explosões de bombinhas de São João. Num instinto natural pegou o controle remoto e aumentou o som, mas, qual o quê: os latidos não cessavam e à medida que o tempo passava, eles ficavam mais altos e mais aterradores no cérebro do pobre torcedor fanático do Timão. Palhares, aproveitando o intervalo do jogo (o Timão estava perdendo de dois a zero para o último colocado da tabela), se dirigiu para a porta da rua com a nítida e ferrenha intenção de identificar de que andar vinham os malditos ganidos e silenciá-los de uma maneira ou de outra; tudo em vão, pois, a porta estava trancada e ele não tinha outra cópia. Desesperado pela sua fragilidade em não poder sair do apartamento e resolver o impasse à sua maneira, xingou, entredentes,  a consorte que levianamente o deixou preso à mercê dos ganidos ensurdecedores. Para ele, agora, o jogo já não tinha a menor importância; precisava sim, ficar livre dos latidos frenéticos que ribombavam tanto pelos seus ouvidos, quanto, pelos quatro cantos do apê. Quase chegando às raias da loucura, pegou o interfone e ligou para o porteiro exigindo que providências fossem tomadas imediatamente para silenciar o abominável vira-lata (deixou de ser cãozinho de madame). Para piorar a situação, ouviu do pacato porteiro de que a dona do apê e consequentemente do cão, estava viajando, e só voltaria no dia seguinte, portanto, não podia fazer nada _ único jeito é aguentar, aconselhou ao  candidato à loucura, Bento Palhares.
A tarde continuava magnífica. No céu azul, nenhuma nuvem pairava... Se existiam nuvens, estas estavam dentro do cérebro atormentado do infeliz corinthiano. Desesperado, sentindo-se um naufrago, à deriva, procurou refúgio no primeiro porto-seguro que encontrou: imiscui-se sob o tapete felpudo da sala. Como uma cobra; como uma minhoca; como um verme qualquer foi se enfiando na vã tentativa de ficar protegido dos insistentes ganidos do miserável vira-lata. Tudo em vão. O que conseguiu realmente foi encontrar um par de brincos e uma tiara de cabelos que a fudida ( seu estado de ânimo estava péssimo) tinha perdido e tinha colocado a culpa na pobre da empregada. Por mais que se enfiasse no inusitado abrigo, mais chegava até ele os ganidos satânicos. Doido e com uma dor atroz nos ouvidos entrou como um réptil por baixo do sofá: nada... os latidos continuavam em sua tarefa de enlouquecer o nosso torcedor. Numa última tentativa desesperadora tentou se atirar da janela, mas, no último momento sentiu uma fisgada no lado direito do cérebro e caiu, imediatamente, no chão de porcelanato escorregadio do apê e, inexplicavelmente para ele, começou a latir ; a ganir; a rosnar entredentes e, o mais curioso: a andar de quatro pelos cômodos bem cuidados pela sua senhora. Ganindo, agora mais alto do que o miserável cãozito, foi até o quarto e mijou , erguendo uma das pernas, na cabeceira da cama, molhando com o líquido   amarelo e nauseabundo a colcha de cetim: orgulho da sua (megera) esposa. Em seguida, dando vários saltos e siricoteios foi até a cozinha onde devorou os restos do frango assado que estava sobre a pia; ainda correndo pela casa e latindo a plenos pulmões pôs-se a arranhar o sofá de couro e, não satisfeito, pôs-se a arranhar as paredes do apartamento visinho, onde reside uma velha senhora, ranzinza e sofredora de otite (inflamação dos ouvidos). Para encurtar a história, basta dizer de que os moradores do prédio não suportando por muito tempo os latidos do corinthiano Palhares e, como a porta estava trancada e ele não a abria, chamaram os bombeiros pra resolver o impasse canino. É claro que num abrir e fechar de olhos a porta foi aberta e qual não foi a surpresa de todos quando depararam com o fiel corinthiano acuado num canto mostrando as garras (unhas) e arregaçando os beiços expondo os caninos pontiagudos e eriçando os pelos do corpo: estava pelado. Os bombeiros ficaram amedrontados com a ferocidade do pobre cão, quero dizer; do pobre homem, que, em posição de ataque se preparava para defender o seu território e o resto dos ossos de frango espalhados ao seu redor. Com muito custo conseguiram lhe passar uma corda pelo pescoço. Com muita paciência e usando de psicologia animal (passaram a chamá-lo de Rex), ele saiu arrastado e ganindo e de quando em quando mostrava os dentes em atitude ferina. Do apartamento seguiu direto para o Pronto-Socorro Municipal onde uma junta psiquiátrica se interessou pelo seu inusitado mal. Pelos seis meses seguintes, Palhares, foi alvo de muitos médicos, questionamentos, entrevistas e cuidados mil, a ponto de ter uma cadeira cativa no plantão médico do Hospital Municipal. Centenas de estudantes da Faculdade de Medicina queriam a qualquer custo conhecê-lo e anotar as suas querelas. Com o passar do tempo e a poder de muito remédio faixa preta ele foi aos poucos voltando ao seu normal. A primeira coisa que evidenciou o início de sua cura foi deixar de roer ossos; em seguida deixou de mijar no pé dos móveis e por último, abandonou os ganidos que ainda dava quando era noite de Lua cheia. Problema mesmo, só deu, quando uma cadela Labrador do apartamento vizinho entrou no cio. Foi um “Deus nos acuda” para mantê-lo preso no apê. De todos os predicados caninos que tinha tomado conta do seu “EU”, só restou mesmo o hábito de dormir enrodilhado ao lado de sua mulher e de vez em quando coçar o corpo como se tivesse expulsando algumas pulgas inconvenientes. O amigo leitor deve estar se perguntando como eu fiquei sabendo de sua tragédia e eu respondo: “ Eu fui o primeiro psiquiatra que cuidou dele e, a mim, ele se abriu, sem antes, porém, me dar uma mordida na mão. A cicatriz ainda está viva em minha mão para quem de mim duvidar.”
Em tempo: Bento Palhares depois de curado, nunca mais assistiu futebol pela TV e, no seu laudo, para dar entrada na Ford solicitando licença médica, todos nós, psiquiatras que dele cuidamos, fomos unânimes em declarar  “ O paciente Bento Palhares teve um SURTO CANINO”.


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