UM SURTO CANINO
A tarde estava maravilhosa. Bento
Palhares, como sempre, aproveitava o tempo livre, visto que, a dedicada patroa
tinha ido ao Shoping com sua amiga inestimável Heloísa para fuxicar as lojas:
sempre encontravam algo para comprar, ou, se não comprar, pelo menos para fazer
de conta _ para ele se deleitar e se
esparramar no sofá e curtir o futebol das tardes de domingo. Era sagrado estar
sozinho e vibrar com palavrões que vociferava dentre as jogadas do seu time de
coração: o Corinthians. Bom, nesta tarde tudo estava transcorrendo dentro da
normalidade: as cervejas suando no congelador; o prato de tira-gosto na mesinha
central; as calças jogadas a esmo sobre o grosso tapete; a porta trancada (por
fora, a consorte esqueceu de deixar as chaves); o canal de transmissão do jogo
sem uma única sombra (LCD impecável de 42 polegadas ), enfim,
estava instalado para assistir o jogo como um paxá. E, o juiz deu o apito
inicial e o jogo começou e, no mesmo instante, começou um cachorro a latir
desvairadamente em algum apartamento superior (o prédio tem 12 andares). A
princípio, Palhares não se incomodou, pois, pensou: é questão de minutos e o
cãozito ( no prédio só tinha cães de madame) fecha a goela. E, o jogo continuou
indiferente aos ganidos, agora, já irritantes do fudido – primeiro palavrão que
lhe veio à boca cheia de salaminho. Num gesto natural, Palhares, colocou uma
almofada sobre o lado exposto da cabeça, tentando assim, amenizar os latidos
que ecoavam pela sala como explosões de bombinhas de São João. Num instinto
natural pegou o controle remoto e aumentou o som, mas, qual o quê: os latidos
não cessavam e à medida que o tempo passava, eles ficavam mais altos e mais
aterradores no cérebro do pobre torcedor fanático do Timão. Palhares,
aproveitando o intervalo do jogo (o Timão estava perdendo de dois a zero para o
último colocado da tabela), se dirigiu para a porta da rua com a nítida e
ferrenha intenção de identificar de que andar vinham os malditos ganidos e
silenciá-los de uma maneira ou de outra; tudo em vão, pois, a porta estava
trancada e ele não tinha outra cópia. Desesperado pela sua fragilidade em não
poder sair do apartamento e resolver o impasse à sua maneira, xingou, entredentes, a consorte que levianamente o deixou preso à
mercê dos ganidos ensurdecedores. Para ele, agora, o jogo já não tinha a menor
importância; precisava sim, ficar livre dos latidos frenéticos que ribombavam
tanto pelos seus ouvidos, quanto, pelos quatro cantos do apê. Quase chegando às
raias da loucura, pegou o interfone e ligou para o porteiro exigindo que
providências fossem tomadas imediatamente para silenciar o abominável vira-lata
(deixou de ser cãozinho de madame). Para piorar a situação, ouviu do pacato
porteiro de que a dona do apê e consequentemente do cão, estava viajando, e só
voltaria no dia seguinte, portanto, não podia fazer nada _ único jeito é
aguentar, aconselhou ao candidato à
loucura, Bento Palhares.
A tarde continuava magnífica. No
céu azul, nenhuma nuvem pairava... Se existiam nuvens, estas estavam dentro do
cérebro atormentado do infeliz corinthiano. Desesperado, sentindo-se um naufrago,
à deriva, procurou refúgio no primeiro porto-seguro que encontrou: imiscui-se
sob o tapete felpudo da sala. Como uma cobra; como uma minhoca; como um verme
qualquer foi se enfiando na vã tentativa de ficar protegido dos insistentes
ganidos do miserável vira-lata. Tudo em vão. O que conseguiu realmente foi encontrar um
par de brincos e uma tiara de cabelos que a fudida ( seu estado de ânimo estava
péssimo) tinha perdido e tinha colocado a culpa na pobre da empregada. Por mais
que se enfiasse no inusitado abrigo, mais chegava até ele os ganidos satânicos.
Doido e com uma dor atroz nos ouvidos entrou como um réptil por baixo do sofá:
nada... os latidos continuavam em sua tarefa de enlouquecer o nosso torcedor.
Numa última tentativa desesperadora tentou se atirar da janela, mas, no último
momento sentiu uma fisgada no lado direito do cérebro e caiu, imediatamente, no
chão de porcelanato escorregadio do apê e, inexplicavelmente para ele, começou
a latir ; a ganir; a rosnar entredentes e, o mais curioso: a andar de quatro
pelos cômodos bem cuidados pela sua senhora. Ganindo, agora mais alto do que o
miserável cãozito, foi até o quarto e mijou , erguendo uma das pernas, na cabeceira
da cama, molhando com o líquido amarelo
e nauseabundo a colcha de cetim: orgulho da sua (megera) esposa. Em seguida,
dando vários saltos e siricoteios foi até a cozinha onde devorou os restos do
frango assado que estava sobre a pia; ainda correndo pela casa e latindo a
plenos pulmões pôs-se a arranhar o sofá de couro e, não satisfeito, pôs-se a
arranhar as paredes do apartamento visinho, onde reside uma velha senhora,
ranzinza e sofredora de otite (inflamação dos ouvidos). Para encurtar a
história, basta dizer de que os moradores do prédio não suportando por muito
tempo os latidos do corinthiano Palhares e, como a porta estava trancada e ele
não a abria, chamaram os bombeiros pra resolver o impasse canino. É claro que
num abrir e fechar de olhos a porta foi aberta e qual não foi a surpresa de
todos quando depararam com o fiel corinthiano acuado num canto mostrando as
garras (unhas) e arregaçando os beiços expondo os caninos pontiagudos e
eriçando os pelos do corpo: estava pelado. Os bombeiros ficaram amedrontados
com a ferocidade do pobre cão, quero dizer; do pobre homem, que, em posição de
ataque se preparava para defender o seu território e o resto dos ossos de
frango espalhados ao seu redor. Com muito custo conseguiram lhe passar uma
corda pelo pescoço. Com muita paciência e usando de psicologia animal (passaram
a chamá-lo de Rex), ele saiu arrastado e ganindo e de quando em quando mostrava
os dentes em atitude ferina. Do apartamento seguiu direto para o Pronto-Socorro
Municipal onde uma junta psiquiátrica se interessou pelo seu inusitado mal.
Pelos seis meses seguintes, Palhares, foi alvo de muitos médicos,
questionamentos, entrevistas e cuidados mil, a ponto de ter uma cadeira cativa
no plantão médico do Hospital Municipal. Centenas de estudantes da Faculdade de
Medicina queriam a qualquer custo conhecê-lo e anotar as suas querelas. Com o
passar do tempo e a poder de muito remédio faixa preta ele foi aos poucos
voltando ao seu normal. A primeira coisa que evidenciou o início de sua cura
foi deixar de roer ossos; em seguida deixou de mijar no pé dos móveis e por
último, abandonou os ganidos que ainda dava quando era noite de Lua cheia.
Problema mesmo, só deu, quando uma cadela Labrador do apartamento vizinho
entrou no cio. Foi um “Deus nos acuda” para mantê-lo preso no apê. De todos os
predicados caninos que tinha tomado conta do seu “EU”, só restou mesmo o hábito
de dormir enrodilhado ao lado de sua mulher e de vez em quando coçar o corpo
como se tivesse expulsando algumas pulgas inconvenientes. O amigo leitor deve
estar se perguntando como eu fiquei sabendo de sua tragédia e eu respondo: “
Eu fui o primeiro psiquiatra que cuidou dele e, a mim, ele se abriu, sem antes,
porém, me dar uma mordida na mão. A cicatriz ainda está viva em minha mão para
quem de mim duvidar.”
Em tempo: Bento Palhares depois
de curado, nunca mais assistiu futebol pela TV e, no seu laudo, para dar
entrada na Ford solicitando licença médica, todos nós, psiquiatras que dele
cuidamos, fomos unânimes em declarar “ O
paciente Bento Palhares teve um SURTO CANINO”.
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