PARA OS AMIGOS QUERIDOS OLIVIO E SÔNIA CAVALCA
Belarmino Palhares Fonseca passou praticamente toda a sua vida ( uma vida sem sabor) sonhando em possuir um par de sapatos de couro de jacaré e uma cinta de couro de sucuri( legitimos, nunca imitação). Sonhou e até completar 63 anos de idade não viu seu desejo se concretizar. Muitas noites passou em claro vendo-se com os sonhados adornos. Nestas ocasiões ficava calado, meditabundo e não pronunciava uma palavra sequer, mesmo a despeito das inúmeras indagações de sua mulher, Flausina CalixtoFonseca. Casado há mais de 40 anos, teve a vida como uma dura empreitada, sem nada que a tornasse mais suave. Pai de 3 filhos, trabalhou arduamente no campo e depois no bar que adquiriu com a herança recebida de sua mãe. Tudo o que ganhou, gastou, para manter sua família com a mínima dignidade possível. Assim é, que , estudou os filhos até vê-los formados doutores. Inúmeras vezes teve a tentação de atrasar um ou dois meses da Faculdade para realizar o sonho, mas, a consciência sempre o impediu. Nunca confidenciou aos seus familiares deste estranho ( para a época) sonho. Desta maneira ninguém de sua intimidade sabia dos sapatos de couro de jacaré e do cinto de couro de sucuri. Era e sempre foi o segredo maior de sua simples vida. Assim aconteceu até os primórdios do ano de 1968, quando os filhos enveredaram por caminhos traçados pelo destino e a morte abrupta da mulher; picada por uma serpente, mais precisamente, cascavel, quando foi colher milho,no extenso milharal que ficava atrás da casa de morada. Agora, sozinho e viúvo, pensou, podia realizar o seu mais aguerido sonho. Alguns dias se passaram e após a missa de sétimo dia da falecida, embarcou no ônibus e se dirigiu para a capital levando embrulhado em um lenço a quantia necessária para comprar os sapatos e o cinto. Andando em nuvens perambulou pelas ruas centrais da grande cidade até que encontrou a loja que vendia artigos de couro. Negócio vai, negócio vem e ele logo teve às mãos o pacote com os adornos. Satisfeito regressou imediatamente para sua cidade segurando com muita força o ímpeto de usá-los durante o percurso de volta, mas, achou inapropriado e perigoso: poderiam roubá-lo.
Já em casa a história é outra. Assim que desembarcou e cruzou a soleira da porta tirou o par de botinas e com requintes de satisfação calçou os sapatos de couro de jacaré. Por uma eternidade ficou a contemplá-los, e chegou mesmo a beijá-los. O cinto guardou para usar no domingo quando iria ser rezada a missa de trigésimo dia de sua esposa.
O domingo chegou e ele todo aprumado adentrou no recinto sacro e foi sentar-se frente ao altar principal. Com um sorriso disfarçado nos labios contemplou os olhares de curiosidade e espanto dos fiéis que nunca tinham presenciado algo tão insólito. Para provocá-los ainda mais, abriu o paletó e cruzou as pernas: Os sapatos e o cinto se insurgiram contra as exclamações; "a verdade é que eles pareciam ter vida ", confidenciou o sacristão ao jornalista meses depois.
Receoso de que fosse roubado, optou por não mais sair de casa. Pela janela encomendava os alimentos que necessitava. Tornou-se assim um ermitão escravo de seu capricho. Assim transcorreu um bom tempo, até que ele deixou de abrir a janela... ninguém mais o viu.
Só em sua casa Belarmino vivia as vinte e quatro horas adorando seus preciosos adornos, até que...
Até que um dia após tirar os sapatos notou com espanto que lhe faltava um dedo do pé direito. Estranho, pensou, não sentiu dor, mas deixou pra lá. Alguns dias depois ao lavar os pés viu com terror que lhe faltava todos os dedos do pé direito e dois do pé esquerdo e,notou também horrorizado o tamanho dos sapatos... estava folgado em seus pés. Nesta noite ele dormiu e teve pesadelos. Para esquecer do incidente passou a usar o cinto de sucuri bem apertado na barriga.
Assim, viveu uns dias e noites sem maiores novidades, embora mancasse das duas pernas. O engraçado, pensou, é que nunca teve dores com a mutilação dos membros. Acostumou com o aleijão.
Estava até feliz quando a tragédia maior aconteceu. Uma noite, antes de pegar no sono, sentiu uma dor aguda na barriga como se algo o tivesse mordido. De imediato, voltou os olhos para o local ferido e quase desmaiou de surpresa quando viu a fivela do cinto cravada em sua barriga.
Por mais que tentasse não conseguiu retirá-la e lentamente se viu sendo engolido pelo cinto.
Gemeu de dor e riu de felicidade: estava sendo devorado tanto pelos sapatos de couro de jacaré quanto pelo cinto de couro de sucuri. Entre um esgar e outro de dor desapareceu.
Um dia, a polícia local, preocupada com o desparecimento do Belarmino resolveu quebrar a porta e adentrar no recinto. Grande foi a surpresa do Delegado Daércio e do Escrivão Ovídio quando presenciara cena macabra: metade do corpo do Belarmino estava dentro do cinto, agora uma tremenda sucuri e outra metade na boca escancarada de um jacaré ( os sapatos). Com vários tiros o Doutor Delegado abateu as feras e o pouco que restou do corpo do infeliz sonhador foi levado e enterrado ao lado de sua viúva.
Ao jornalista que veio da capital o sacristão Capistrano Inocêncio declarou: " a verdade é que eles ( os sapatos e o cinto) pareciam ter vida."
Durante um mês a comunidade religiosa da cidade rezou e se benzeu.
Uma tarde tomando café com os amigos Daércio e Ovídio fiquei sabendo desta história que ora relatei. Verdade ou mentira deles? Fica a seu critério amigo leitor, decidir.
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