domingo, 16 de julho de 2017

A NAU DOS AFLITOS!

Cheguei no Porto muito antes da hora marcada em que  a Nau dos Aflitos ia zarpar. A noite estava escura, tanto no firmamento, quanto, dentro da minha alma.Uma dúzia de aflitos, como eu,  esperavam para embarcar. Um vento gélido e barulhento fustigava o meu rosto e o dos miseráveis, que, se compraziam em expor o corpo nu para as cruéis vergastadas do vento; nosso primeiro algoz.
Já há muito que eu vinha procurando uma maneira de ser aceito pelo Capitão da fatídica Nau, porém, ele sempre achou que eu não estava enquadrado no cruel sentimento da AFLIÇÃO... Era muito rígido quanta às regras, tanto é, que somente este grupo de desgraçados,  foi aceito por ele.
A Nau não era muito grande. Era um velho barco adaptado para receber miseráveis e, almas desgarradas. Era negro como azeviche. Só tinha o Capitão. Não tinha tripulação. Foi nos explicado por ele, que,  os AFLITOS, conduziriam a Nau, pelos mares e oceanos jamais existentes.
Às duas horas em ponto, madrugada alta, soou o apito. Era o sinal para adentrarmos na Nau. Neste instante, um cão esquálido, esfomeado, uivou... um uivo doído; mais um lamento, do que um urro de um cão feliz. Também era um AFLITO.
As amarras se soltaram e rangendo como os ossos de um esqueleto jogado às margens do caminho, ele se pôs em direção ao alto mar. Como um sonâmbulo, passos trôpegos saí, cambaleando pelo convés de tábuas encardidas para conhecer a Nau que nos levaria para lugar algum... ou, se tivéssemos sorte, para o abismo incomensurável, dos monstros abissais. Em nenhum momento nos falamos. A linguagem adotada era o choro e o ranger dos dentes. O Capitão nunca se apresentou para nós. Mais tarde soube, que ele era um fantasma... uma alma penada.  A Nau seguia sem ir. As estrelas e a lua se recolheram em suas redomas. O mar uivava como lobos atacando o Alce indefeso. Tudo era sinistro.
Os dias e as noites se foram sucedendo. A Nau, ora seguia adiante, ora retrocedia, ora girava como um pião. Já no terceiro dia, não mais existiam as velas. Uma tempestade de indizível proporção se encarregou de destruí-las: rotas, esgarçadas e esfarrapadas, serviam de lenço para enxugar os prantos dos amaldiçoados que se contorciam em dores inenarráveis... dores da alma.
Era madrugada fria e desumana quando o primeiro dos castigos dos AFLITOS aconteceu, e nos deixou assustados, embora soubéssemos que nunca teríamos complacência de ninguém, nem da natureza.
E veio pelo mar.
Uma onda gigantesca virou a nossa Nau de cabeça para baixo. Num átimo, mergulhamos nas gélidas águas glaciais. Eu, senti os pés pisarem o fundo do abismo. Incrível, continuava respirando. A morte nos vomitou para cima e nos jogou dentro da Nau, que aprumada, seguia velejando. A morte não quis aliviar nossas decepções, agruras e aflições... Maldito destino.
A Nau singrava as águas escuras e traiçoeiras à revelia. Não tinha leme, bússola, sextante... nada que nos orientasse. Nem as estrelas apareceram para nos guiar. Éramos um bando de desgraçados e amaldiçoados.
O segundo castigo veio pelo ar. Dezenas de albatrozes famintos pousaram na Nau e se deleitaram com nossos olhos . Quando, já saciados, alçaram voo, deixaram deitados pelo chão sujo e nauseabundo um monte de corpos cegos. A partir de então, era comum darmos esbarrões e trombadas que nos atiravam para todo lado... Oh! desafortunados.
A Nau, após um século navegando sem rumo algum, começou a se desmanchar. Durante a noite o som das madeiras se rompendo se confundiam com o ranger dos dentes dos abandonados AFLITOS.
Passaram-se três séculos e, ainda estávamos singrando os mares deste mundo que nos abandonou quando uma tormenta arremeteu a Nau de encontro a uma praia deserta.
Enfim, pensei, chegamos ao nosso túmulo. Ao nosso desterro. À nossa última morada.
Esfarrapados e cegos; famintos e machucados, descemos e caminhamos por duas décadas, até que encontramos o que nos cabia:
Seres monstruosos, sem olhos, sem boca, sem pernas e braços, nos receberam e, nos deram as boas vindas ( riam e nos olhavam e caminhavam e dançavam ao nosso redor). Num instante, nos tornamos semelhantes a eles e... fomos monstros.
Ah, por eles soube que o Capitão era um fantasma... era o corpo reencarnado de um facínora que aterrorizava os sete mares. De 500 em 500 anos ele descarregava um grupo de AFLITOS na Ilha dos monstros que um dia ousaram serem felizes... Ah, felicidade, grande tolice.
Ficamos em euforia, quando soubemos que daqui a 500 anos teríamos visitas...visitas de AFLITOS.

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