segunda-feira, 2 de julho de 2018

A ARANHA CARANGUEJEIRA
1. O SÍTIO “20 ALQUEIRES”
Eu tinha acabado de completar 13 anos de idade quando fui levado para morar na roça, mais precisamente, no sítio “20 alqueires”, no sertão do Rio das Antas, no município de Redenção da Serra, pelo meu pai, que o tinha comprado para lá colocar 15 vacas, um touro da raça Gir e dois cavalos, sendo um para arreio e outro para cangalha. No sítio existia uma casa grande com três quartos, cozinha, sala e despensa, onde fui me alojar e trabalhar como roceiro das cinco horas da madrugada, até as seis horas da tarde, pelo período difícil de dois anos. Estava sozinho, visto que minha mãe e meus três irmãos continuaram morando em Taubaté. Era a primeira vez que eu ficava sozinho num casarão sem luz, sem água encanada e sem companhia alguma com quem eu pudesse conversar nas noites frias e sem fim do sertão (durou 3 meses).
A solidão morou comigo até meados de março (tinha chegado em janeiro), quando meu pai apareceu num domingo trazendo na garupa de sua “vespa” o meu primo Ari, que se comprometeu com ele de me fazer companhia o tempo que lá eu ficasse, assumindo comigo as tarefas diárias, tais como tirar o leite das vacas; levar no ponto; fazer cerca; roçar pasto (embora fosse formado de capim gordura, tinha alguns capões de samambaia, onde moravam enormes cascavéis) e, cuidar da estrada, fazendo valetas para que a água das chuvas escorresse e, assim, não estragasse o leito por si só, já cheio de buracos.
Ari, meu primo em segundo grau, estava com 19 anos de idade. Era robusto, forte e já habituado com as lides da roças, pois, tinha trabalhado no sítio do seu pai no bairro da Catióca, no município de Cunha. Desde o início nos demos muito bem e, para melhor “tocarmos” os trabalhos fizemos uma divisão de funções. Não foi preciso muita conversa para entrarmos em acordo, mesmo porque, estávamos sempre juntos em todas as tarefas, sendo que a única que ele se recusou por não ter habilidades foi com a cozinha, isto é, com o preparo dos alimentos. Embora, eu, também não fosse um hábil cozinheiro, resolvi arcar com esta função e, pelo que eu me lembro o primo nunca reclamou do “grude” que eu preparava duas vezes por dia: antes de sair para o trabalho no campo, depois de tirar o leite, quando eu preparava o almoço e à tarde, após tomar banho na bica, quando arrumava a janta (sempre esquentava as sobras do almoço). Aos domingos, o Ari matava um frango, depenava e me entregava já cortado as partes, para que eu o cozinhasse na panela de ferro sob o calor do fogo do fogão à lenha. Enquanto cozinhava o frango, eu preparava uma salada com produtos da horta e completava tudo com uma espécie de macarronada, que comíamos com muito apetite. Os utensílios usados eram lavados pelo primo que os deixavam lustrosos e brilhantes usando para isso areia e sabão de cinza.
O sítio fazia divisa com uma mata virgem de um lado e de outro lado com as terras do senhor Brasilino. Volta e meia, recebíamos recados pelo motorista do caminhão leiteiro de que alguma vaca nossa tinha arrebentado a cerca e estava pastando em suas terras. Imediatamente o Ari botava o arreio no cavalo Barnabé (nome dado pela minha irmã Fiinha, que o considerava um pangaré) e ia buscar a vaca fujona. Muitas vezes tinha que colocar nela um gancho pendurado no pescoço para que não passasse pelo vão do arame farpado. Este artifício nunca funcionou para a vaca Favorita, que era “cerqueira” desde que deu a primeira cria. Algumas braças da casa, na parte de baixo, passava um ribeirão com águas cristalinas e muito fria, onde tomávamos banho todas as tardes após encerrar os trabalhos. Nestas ocasiões, tirávamos o suor dos corpos, muitas vezes grudado nas roupas e, também aproveitávamos o tempo ainda claro para lavar as roupas. A grande atração do sítio, além da beleza do local, era a estrada que o cortava no meio, por onde passavam outros sitiantes, sendo que alguns paravam para prosear um pouco. A conversa sempre pendia para as novidades que aconteciam na “Vila”, tais como: festas na Igreja; apresentação de circos; jogos de futebol; o comércio no Mercado Municipal etc.. Entre um “papo” e outro, eu servia café com mistura (biscoitos), em canecas de ágate (sempre gostei de ser agradável com os vizinhos).
Enfim, o sitio “20 alqueires”, pelos dois anos seguintes foi o meu lar e, claro, o do Ari também. Nele vivi alegrias, tristezas e muita solidão, o que me fez pela vida toda ser um homem resistente, abnegado e decidido a sempre “ganhar” o que me apeteceu. Também passei maus bocados, principalmente quando ia roçar o pasto e me deparava com um capão de sapé, onde habitavam terríveis cascavéis, urutus e jararacas. Por duas ocasiões quase fui mordido pelos monstruosos répteis, porém, consegui matá-los com foiçadas certeiras. Teve também alguns fatos inusitados envolvendo animais silvestres, insetos, pássaros e bichos do local, mas, o que realmente marcou minha estadia no sítio foi a estranha convivência por algumas semanas com uma aranha, mais precisamente, uma Caranguejeira, que passo a relatar, ainda não acreditando que tudo realmente aconteceu e, que, assim se sucedeu:
2. A ARANHA CARANGUEJEIRA

Não era uma aranha qualquer. Era um belo espécime de uma Caranguejeira. Tinha o enorme corpo peludo e duas pinças enormes. Quando se sentia ameaçada, ela se posicionava sobre as patas anteriores e erguia o corpo, numa atitude hostil. Travamos conhecimento numa noite de tempestade, quando fortes ventos rugiam nas árvores e faziam os bezerros mugirem trêmulos de medo. O Ari já tinha se deitado e, pelos roncos, deduzi que já estava dormindo. Como sempre eu mantinha uma chapa de alumínio sobre o chão da cozinha e sobre ela espalhava algumas brasas para manter o local aquecido e, claro, esquentar os meus pés cansados de caminharem pelo brejo à cata de inhames para a sopa da janta. Num canto da cozinha, atrás da porta, eu guardava a lenha empilhada, para que secasse e ficasse no “ponto” para ir ao fogo,pois secas, produziam grandes labaredas e muitas brasas. Também, era meu costume colocar algumas batatas-doce para assar. Assadas elas se tornavam o substituto à altura de pães, ainda mais quando lambuzadas em mel. Foi nesta noite que travei contato pela primeira vez com a estranha aranha (ainda não tinha visto nenhuma desse porte), quando tirei alguns tocos de lenha para avivar o fogo. Assim, que me afastei, escutei um pequeno barulho que me chamou a atenção. Para mim, não seria surpresa se visse um camundongo, mas, qual o qual, o que vi foi a assustadora aranha se aproximando do braseiro, colocando-se repentinamente em posição de ataque. Temeroso, recuei alguns passos e, me apoderei da vassoura para matá-la e jogá-la no braseiro. Este foi o meu primeiro impulso, porém, ao chegar mais perto, vi que ela não podia me atacar; o braseiro nos separava. Cautelosamente, puxei o banquinho e me sentei numa distância considerável, que me mantinha a salvo de um ataque repentino. Instantaneamente, ela também parou, quando, ambos ficamos nos analisando. Tudo não durou mais do que alguns minutos, quando ela, sem mais nem menos, retrocedeu, e foi se esconder no seu abrigo, no meio dos paus de lenha. Nessa noite tive pesadelos povoados por dezenas de aranhas. O dia amanheceu e eu me levantei e fui cuidar das tarefas, esquecendo por completo do incidente com a aranha.
A noite chegou. Após jantarmos e o Ari lavar os utensílios, preparei a folha de metal para colocar o braseiro. Por meia hora, conversamos sobre a vaca Cabreúva que tinha dado a cria no alto do pasto no meio de um sapezal, que aproveitou para “esconder” o bezerro dos cachorros e urubus. Combinamos que depois de levar o leite no “ponto”, iríamos buscá-la, juntamente com seu rebento. Com um “durma bem”, o primo se levantou e foi deitar. Sozinho, ao lado das brasas vermelhadas, fiquei meditando na minha vida; o que seria de mim se ficasse pra sempre morando neste sertão? Foi quando o mesmo barulho da véspera me fez levantar os olhos e atônito contemplar a caranguejeira se colocando frente a mim, agora já não mais ostentando uma posição de ataque. Estava sim, dócil, pois, ao tocá-la com um graveto, ela não se irritou. Juntos ficamos nos fitando por uns vinte minutos, quando ela saiu em desabalada carreira, para seu refúgio.
Esta cena enigmática perdurou por duas semanas. Numa noite de luar intenso, abri a porta da cozinha e em seguida fui até o feixe de lenha, quando o sacudi com brusquidão na esperança de assustar minha “companheira” de “braseiro” para que ela fosse embora, pois, eu receava de que se fosse achada pelo Ari, certamente ele a esmagaria, mas, meu intento foi em vão. No instante em que ela se sentiu incomodada, correu para o lugar de costume e, por um longo tempo ficou me observando com seus enormes olhos. Nessa noite de lua cheia, compreendi que uma forte ligação de amizade e respeito mútuo nos unia.
A vida seguia dentro da rotina estabelecida entre nós: os três moradores da casa do sítio de “20 alqueires”, sem que nada de novo viesse quebrar a paz e harmonia. Isso até que o inesperado aconteceu e, foi o seguinte: Uma noite, num sábado (sempre uma noite), o Ari deixou a porta da cozinha aberta, e foi dormir. Por infelicidade da minha amiga (assim eu já a considerava),eu estava no quarto arrumando a cama e preparando a roupa que ia vestir no dia seguinte, já que tínhamos combinado de ir na Vila assistir uma tourada. O domingo era o dia em que aproveitávamos para vestir as melhores roupas e, também, a oportunidade de eu calçar e desfilar com os meus sapatos de fivela, que meu pai me presenteou no meu aniversário (para ir à Vila, íamos descalços e calçávamos os sapatos na entrada da cidade, tirando-os quando voltávamos). Assim que saí do quarto e regressei à cozinha vi uma cena que me deixou em pânico: o gato rajado, que dormia ao relento, entrou no aposento e atacou a aranha, ou melhor, a minha amiga, dando-lhe patadas e unhadas. Muito ela fez para se defender, mas foi em vão e, mesmo depois de dar duas vassouradas no pérfido felino ele não desistiu do mórbido intento de transformá-la em comida e, assim o fez. Lambendo os beiços ele saiu com a metade da aranha dilacerada. O que restou foi a cabeça da agonizante aranha que antes de morrer me lançou um último olhar que eu traduzi no momento como: “Adeus, meu querido amigo”. A partir desse terrível e nefasto acontecimento, decidi que não ficava mais no sítio. Passaram-se 5 meses e, num belo dia de verão, meu pai veio nos visitar e disse que tinha vendido o sítio; de que íamos embora para Taubaté.
Antes de partir, já com as malas arrumadas, dei um jeito de sair de “fininho” e, sem que ninguém visse, fui até um monturo de terra onde tinha enterrado os restos mortais da minha querida amiga. Um pé de margarida nasceu ali, ao acaso e, uma abelha, voava sobre ela.
Muitos anos após, ao fazer o Curso de Biologia, me esmerei no estudo dos aracnídeos, embora, nunca mais me deparei com outra ARANHA CARANGUEJEIRA.


Nenhum comentário:

Postar um comentário