sexta-feira, 9 de agosto de 2013

63. O GATO DE PORCELANA

I
O gato de porcelana tinha duas vidas e, não, sete.
Na primeira vida ele se mantinha frio e inerte;
Era um gato que ficava sobre o criado e, nada além.
Ausente de vida, ele a tudo olhava, com exacerbado, desdém.

II
Na segunda vida ele se encorpava todo e arrepiava os pelos
Quando eu, incauto amante, entrava na alcova, feliz e trêmulo.
Às vezes eu o sentia feroz e então temia suas garras aduncas
E, me precavia, evitando o seu olhar, que me fitava a nuca.

III
O gato de porcelana era o “querubim” dela e lhe devotava amor
A tal ponto de suplicar que não fizéssemos sexo com tal furor,
Para que ele não ronronasse e se jogasse num trágico suicídio
Destruindo consigo o coração de mulher sem nenhum tirocínio.

IV
E, aconteceu, numa noite em que eu, ébrio de amor e absinto,
Adentrei no quarto, tendo a razão e o medo, do corpo, extintos.
Num repente atirei-me sobre a mulher desdenhando o guardião
Que se enfureceu, dilatando as pupilas, na sensual escuridão.

V
Num átimo ele se metamorfoseou: a porcelana ganhou vida,
De fria que era, agora, recendia um calor excessivo de carne viva,
Onde os pelos eriçados e as garras pontiagudas se projetavam
Como se lanças fossem, prontas, para me lanharem a garganta.

VI
Bêbado, de amor e de absinto, ainda tive a lucidez para reagir
À investida do cruel felino (nunca fui homem, do perigo fugir),
E, com um pontapé o arremessei de encontro às paredes nuas
Da jaula em que nos encontrávamos e, imersos na penumbra.

VII
Com um ronronar rouco e amedrontador o gato de porcelana
Expirou suas duas vidas em cacos espalhados pela alcova.
Liberto, do perigo de morte, retornei aos atos libidinosos
Com a querida amante que tremia num choro copioso.

VIII
Entre beijos e afagos fí-la crer que o gato teve o fim merecido
Nessa noite de amores e promessas onde se cumpriu o destino
De anular o sortilégio que se apropriou do inerme “bibelô”
Tornando-o uma ameaça para os amantes ébrios e incautos.

IX
Cansado pela ardente faina de mil desejos, adormeci, risonho.
Feliz, pela aventura vivida me vi, num redemoinho, num sonho,
Onde um gato sem cara e sem membros me olhava assustador
Ameaçando estraçalhar o seu algoz num ataque de furor.

X
Abestalhado pelo medo da morte acordei e vi, boquiaberto
Que estava no meu quarto e, que, além de mim, estava deserto.
Ninguém, nem mesmo o gato de porcelana com suas vidas
Estava sobre o criado e, triste, compreendi, a minha sina:
Sonhar, sonhar e sonhar e, nunca; amar, amar e amar!

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