domingo, 15 de março de 2015

O DESBOCADO!


Nem bem tinha chegado os feriados da Semana Santa e nós, pescadores amadores e profissionais, já vivíamos uma labuta nos preparativos da tão esperada pescaria que faríamos no Pantanal. Como todo ano, a pescaria era organizada pelo Paulo Bustamante, que, se esmerava na preparação dos anzois; dos mantimentos, das varas, enfim, do equipamento como um todo.Éramos em seis. Além do organizador viajavam eu e os companheiros Claudio, Tonico Ferraz e o Mauricio e, claro, o Vitinho, um garoto dos seus doze anos, muito inteligente e dotado de uma sorte espetacular para fisgar dourados.Era véspera da partida. A caminhonete do Paulo já estava com o barco à reboque e lotado das traias. À noite nos reunimos em sua residência para ultimar os detalhes quando fomos informados de que um novo "pescador" ia se integrar ao grupo. Ficamos curiosos em saber quem seria o destemido pescador para se aventurar conosco nos confins do pantanal. Entre um copo e outro de cerveja o Paulo nos informou que era um amigo, mais precisamente o Serafim. É evidente que as perguntas pipocaram: - Quem era ele?, Era pescador de verdade ou apenas mais um aventureiro?; tinha as traias completas ou precisaria que nós a emprestássemos?; era de boa índole? A estas perguntas o Paulo sempre rindo respondeu que nada disso importava e de que ele já estava integrado na comitiva.Assim, de seis passamos para sete. No outro dia bem cedo a comitiva zarpou de Taubaté para o pantanal em dois carros, a saber: a caminhonete do Paulo e o gol zero, do Claudio.
A travessia do Estado de São Paulo foi moleza. As estradas por que passamos estavam ótimas. De vez em quando parávamos num posto de gasolina para abastecer tanto o tanque de combustível, quanto os nossos estômagos, acompanhado de uma cervejinha, pois o calor que fazia era de lascar. Quando entramos na estrada do Mato Grosso fomos inundados de uma excitação fora do comum e cada qual começou a falar dos peixes que ia pegar: dourados, pacus, piranhas e enormes traíras.
Em Cáceres, paramos para comprar iscas: o famoso minhocoçu, uma espécie agigantada de minhoca que se enrolava nas mãos quando ia para o anzol e as escorregadias tuviras (espécie de peixe apropriada para pegar dourados). Compramos também verduras, frutas e alguns garrafões de pinga que seriam trocados por frangos, carne de jacaré e outras regalias próprias dos pantaneiros (já tínhamos feito isso em outras pescarias). Tudo começou quando saímos de Cáceres e chegamos nas cidades de Jaciara e Juscimeira. Numa delas, não me lembro, o novato na viagem,Serafim, bebeu mais do que o costume e ao se instalar na caminhonete começou a esbravejar palavrões indizíveis. No início, demos boas risadas e continuamos a viagem. O sol estava a pino. O calor era insuportável, o que aumentava a irritação de alguns (eu mesmo). Rodado algumas centenas de quilômetros e o nosso "desbocado" não parava de falar palavrões. A todo instante vociferava um "puta que pariu", "filho da puta", "caralho" (aliás, era o que não saía de sua boca), "vá tomar no cu", "boceta" e mais o que lembrava. Estávamos "putos" da vida, mas, para que a viagem transcorresse em paz, fizemos "vista grossa" na indelicadeza do novato. Já, cansados pela viagem, pelo calor insuportável e pelos palavrões guspidos da boca do Serafim, entramos no caminho de terra que ía nos levar até a fazenda à beira do rio Cabaçal onde íamos acampar. E, assim, aconteceu. Eram quatro horas da tarde quando começamos a arriar as traias do barco e dos carros, pois tínhamos que montar as barracas antes do cair da noite. Foi um azáfama danado. Cada qual cumpriu sua tarefa com prazer e, até mesmo o Serafim com seus incontáveis palavrões trabalhou com afinco. Curioso é que chegando no local à margem do belo rio ele aumentou ainda mais a sua carga de torpedos sujos.
A manhã seguinte chegou com o clarão da aurora. Às seis horas da matina eu já estava preparando o café, enquanto os demais preparavam as traias para o primeiro dia de pescaria. Alegres e esperançosos rumamos rio abaixo em dois barcos para pescar os suculentos dourados. Em meu barco ía o Paulo, o Vitinho e o Serafim.No outro barco o Marcelo, o Tonico e o Mauricio. Duas horas depois estávamos ancorados num remanso do rio, local excelente para a pescaria. O silêncio era envolvente. De quando em quando um pássaro gorgeava em uma árvore. Porém, não se passaram alguns minutos e o Serafim deu início à sua ladainha de palavrões e começou dizendo:
_ Porra, Paulo, parece que não tem peixe nesse caralho de rio.
_Calma, Serafim, calma.
_Calma, o caralho, porra, vim de longe pra não pegar nem um cacete de dourado?
_ Se você continuar esbravejando vai ser pior, exclamou o Paulo, já de saco cheio.
_ Porra, devia ter ficado em... e, ter ido na zona comer uma buça bem molhada.
_ Molhado vai ficar você se não calar a boca, falei, exasperado.
Assim, ele se portou até que resolvemos voltar ao acampamento sem pegar nenhum peixe. Estávamos sim, repletos de palavrões e mais palavrões.
O dia seguinte não foi diferente. O Serafim aprimorou os seus palavrões e até parece que virou maldição, pois nãos fisgamos nenhum peixe o dia todo.
O mesmo aconteceu com os demais pescadores. Todos estávamos de mãos vazias e além da frustração tínhamos que aguentar os infernais palavrões. O que nos salvou foram os garrafões de pinga. No primeiro dia trocamos um com dois suculentos dourados e três pacus. No terceiro dia, após fisgarmos mirrados peixes, fomos nadar no rio e cansados fomos dormir mais cedo. Lá pelas oito horas da noite levantamos e fomos jogar truco. Foi então que tudo aconteceu.
Dentro da barraca e sentados nos bancos forramos a pequena mesa e iniciamos o jogo de truco. O Serafim me escolheu para parceiro e a outra dupla foi formada pelo Paulo e Mauricio. Não tinha chegado na metade da partida quando o Serafim desembestou a falar os seus malditos palavrões: ao invés de trucar, gritava _ seus fudidos, vocês se foderam, tenho o zape; ou então: esta partida vale a buça de suas mães, ou então; quem perder vai chupar a minha rola; ou mais, vou comer o rabo de quem perder. Lá pelas onze horas deu-se o inesperado (ou esperado). O Paulo se levantou pegou um sabonete e um litro de álcool e, aproveitando o peso do seu corpanzil se atirou de encontro ao Serafim, que não suportando o seu peso caiu, esborrachado no chão de terra da barraca. Foi tudo tão repentino que não conseguimos esboçar nenhuma reação e, quando demos por nós o Paulo estava derrubando álccol na guela do Serafim e esfregando sabonete em sua língua. A contenda durou alguns segundos, mas foi o necessário para fazer o Serafim parar com seus palavrões. Desde essa noite até o dia que chegamos em... ele se absteve de qualquer palavrão. Veio mudo e taciturno. E, eu, o que fiz? Assim que saí da barraca após a lavagem bucal do desbocado, falei um enorme palavrão. Disse rindo: Puta que pariu, foi a melhor coisa que vi! Estupefato pelo palavrão, compreendi assustado que estava contaminado e, mais que depressa dirigi-me para minha barraca para me decontaminar e comecei a ler o poema épico ENEIDA do poeta romano VIRGÍLIO (I a. C.).
Pra finalizar; nos dias seguintes após o "sabão" dado no Serafim, fisgamos dezenas e dezenas de ótimos exemplares de peixes.
Hoje, às vezes, sinto saudades da pescaria com a figura conturbada do Serafim, o DESBOCADO.
N.A.
ENEIDA - poema épico que conta a saga de Eneias, um troiano que é salvo dos gregos em Troia, viaja errante pelo Mediterrâneo até chegar à península Ibérica. O poema foi publicado em 19 a. C.
VIRGÍLIO- Poeta romano. Nasceu em 15/10 de 70 a. C. em Virgílio e morreu em 21/09 de 19 a. C. em Broundisi- Itália.

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