EU, A PONTE, A PARDOCA E, O GATO... UM CONTO EM 4 ATOS.
EU
Nada tenho de especial. Sou um mortal comum. Vivi até agora, aos 49 anos de idade, perambulando de um lugar para outro, sem destino, sem casa para morar, sem um amor, sem dinheiro e, claro, sem ambições. Cada pedaço de terra era o meu refúgio, e, por estar imerso em terra, trago o corpo e, as roupas rasgadas e amassadas, impregnados de um barro secular.
Com minha desdita, trago uma fome abissal que vive a corroer o meu estômago. De vez em quando me alimento de restos de comida que vasculho nos lixos, ou, em raras ocasiões, uma coxinha oferecida por este ou aquele viajante mais recompensado pela sorte. No mais, sigo pela vida como um pária e, se sou, feliz ou não, não o sei dizer.
A PONTE
Era uma ponte de um pau só, que nas roças por onde perambulei dão o nome interessante de “pinguela”. Sempre tive o cuidado de não trocar a vogal final de “a” por “o”. Nunca gostei de me mostrar inconveniente ou desagradável. Esta ponte, ou melhor, esta vara de pau ligava uma margem à outra por cima de um ribeirão de águas frescas e cristalinas. Tinha o comprimento de uns três ou quatro metros e era usada pelos sitiantes circunvizinhos que iam aos sábados trocar os seus produtos roceiros por alguns trocados.
A PARDOCA
Sem dúvida alguma era uma pardoca, pela plumagem parda e sem brilho e, pelo tamanho diminuto. Estava pousada no meio da pinguela, já jazia algum tempo, pois, quando me deitei na cabeceira da ponte sob um ingazeiro, passei a contemplá-la e, vi que estava presa por uma perna numa fenda do pau, que por já estar carcomido pelos cupins apresentava inúmeras rachaduras pelo lenho ressequido. Depois de muita lutar para retirar a perna, abaixou-se e ficou imóvel à espera de um milagre, ou, sei lá o quê.
O GATO
Era um gato rajado. Tinha os pelos do corpo ralos, e, de aparência sadia somente os bigodes que sobressaíam quais cipós de sua cabeça mirrada. Como eu, ele demonstrava estar morto de fome, o que pude deduzir pela baba que começou a escorrer de sua boca fétida, onde alguns dentes pontiagudos se projetavam. Com a esperteza de seus parentes felinos , subiu sobre a ponte e, com um andar malicioso e silencioso se dirigiu até a pardoca.
I ATO:
Vislumbrando o meu almoço bem à frente e sem resistência alguma, a pardoca já se me apresentava como um saboroso manjar, o que me faria satisfeito pelo resto da tarde. Com gestos trêmulos agarrei uma pedra e fui rastejando pelo insensível lenho até a avezita que, imóvel, não antevia qual seria o seu destino, já decretado por mim: sua morte e o ato de “matar o que estava me matando”. E, assim o fiz.
II ATO
Num repente, o gato rajado, saltou atrás da pardoca e arreganhou a boca e, afiou as garras para abocanhar e estraçalhar o seu tão almejado almoço (ambos estávamos morrendo de fome). De sua boca peluda, saltaram os dentes alvos, finos e pontiagudos. Para a pardoca, a morte se apresentou de duas maneiras: ou a pedrada certeira, ou, a mordida implacável.
III ATO
A pardoca, vivendo os últimos instantes de sua breve vida, resolveu lutar e, numa última e desesperada tentativa, reuniu todas as forças do seu diminuto corpinho e puxou a perna com a maior dificuldade. Num ímpeto destemido, ela se viu livre da armadilha e, com um gracioso bater de asas elevou-se às alturas indo pousar no galho mais alto do ingazeiro, onde emitiu alguns trinados, visto que, pardoca não canta... Milagre? Mostrando estar gozando de nossas derrotas.
IV ATO
Na pinguela, ficamos, eu e o gato, com as mãos abanando e os estômagos roncando. Creio que tudo se passou ao mesmo tempo. Tivemos os mesmos pensamentos. Num átimo, nos engalfinhamos numa luta doida, cujo intento era substituirmos a refeição que a pardoca nos daria. Coma a pedra eu tentava quebrar a cabeça do estúpido felino que enfrentava um animal maior e mais possante que ele. Com os dentes e garras afiadas ele, pulou sobre mim, tentando alcançar a minha jugular (herança genética dos felinos), pois, se obtivesse resultado beberia o sangue quente e fresco bombeado pelo meu trêmulo coração. O embate durou alguns segundo, quando, numa manobra infeliz, caí dentro do ribeirão arrastando a “fera” que estava com as garras enroscadas em meu pescoço. Notei que um líquido vermelho e pegajoso molhava minhas faces, antes de mergulharmos nas águas frias (era inverno). Da última coisa que tenho lembrança foi ver um enorme sáurio, mais precisamente um jacaré se aproximar de nós e, com a bocarra arreganhada, engolir o meu braço direito e o gato. Com muito custo saí do ribeirão e rastejei até a margem, deixando um rastro de sangue na areia alva. Agonizante, porém salvo, o que não aconteceu com o gato, olhei para o alto e ainda pude contemplar a pardoca saltitando dentre os galhos da árvore e me olhando com sarcasmo, como a dizer:
_ Bem feito, para vocês dois! E, alçou voo, para bem longe.
MORAL DO CONTO: “POR MAIS FOME QUE VOCÊ TENHA, NÃO TENHA PRESSA EM MATÁ-LA”.
ALDO DE AGUIAR
TAUBATÉ, 8 DE ABRIL DE 2018
domingo, 8 de abril de 2018
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