BEM-TE-VI... BEM, NÃO TE VI!
I
Estava namorando Aninha desde a festa junina do ano passado. Conheci-a, quando fui convidado, pela sinhá Percivalda, para dançar a quadrilha. A festa junina acontecia no terreiro enfeitado de bandeirinhas e bambus do sítio do senhor Capistrano de Abreu, quando lá pelas cinco horas da tarde teve início a famosa quadrilha, marcada com maestria pela mãe da jovem Aninha uma garota de dezesseis anos, dona de uma beleza e joviabilidade incomuns. Era, a mais requisitada pelos rapazes da região, embora, nunca tivesse dado “bola” para nenhum deles. Seu maior prazer,dizia, era estudar, frequentar uma boa escola e, ser professora. Para ela eu sorria sempre que tinha uma oportunidade e, quando me entusiasmava sobremaneira lhe dava algumas piscadelas, mas, ela nunca demonstrou ter uma queda por mim, ao contrário, virava sempre o rosto, como a dizer: “ que cara mais atrevido”.
II
Na ocasião, eu tinha dezoito anos de idade incompletos. Era, por assim dizer, um rapaz dotado de todos os atributos para um jovem da zona rural. Tinha acabado de concluir o ginásio estadual na escola da Vila. Para ajudar meus pais e irmãos menores, labutava na roça, ordenando vacas, plantando e colhendo os produtos que nos mantinham numa situação financeira razoável. Vistoso que era ( dizia minha mãe), tive algumas namoradas e alguns flertes, todos eles inconseqüentes, apenas passa-tempos. Nunca cheguei a me apaixonar por nenhuma delas, mesmo porque, nenhuma me atraiu e, assim, fui tocando a vida até a tarde em que fui dançar quadrilha... até o momento em que peguei nas delicadas mãos de Aninha, num dos passes da dança.
III
A quadrilha estava no auge, quando, por força do destino (existe?), eu tropecei e me lancei de supetão nos braços da jovem dançarina, a requisitada Aninha. Esperando ser desvencilhado de seus braços com um safanão, vi-me, abraçado por ela e, num gesto de carinho, passou a mão fina e delicada pelo meu rosto, dizendo-me ternamente, num sussurro que só eu pude ouvir: “ Casemiro, tenha calma...” e, me sorriu de uma maneira que eu o entendi como; “você é muito legal e, eu gosto de estar ao seu lado.” Imediatamente, passei o lenço xadrez pelo rosto e continuei a dançar, porém, agora com o coração a retumbar de alegria.
IV
A festa junina se esparramou até a meia noite, quando os convidados já satisfeitos com as iguarias e o quentão fervente, foram se despedindo dos anfitriões e, cada qual, carregando as prendas arrematadas no leilão beneficente ( o montante arrecadado era para a reforma da capela do bairro), se acomodavam em suas montarias, charretes e carros de bois , tocando-os pelas curvas sinuosas da estrada, acompanhados de quando em quando pelos pios de agourentas corujas. Eu, confesso fui um dos últimos a me despedir, procurando com esse ardil, ficar mais tempo da formosa Aninha. Foi sua mãe, a sinhá Percivalda que sem saber me proporcionou a chance de ficar junto á querida donzela. Procurando-me agradar, pediu para que a filha estimada fosse até cozinha buscar um bolão de fubá para presentear minha mãe. Num átimo ela saiu correndo para voltar logo em seguida com a prenda e, encabulada, notou que eu estava sozinho, que sua mãe tinha saído para dar atenção a outros convidados. Encabulados, permanecemos por alguns minutos até que ela, balbuciando, disse-me estar feliz com minha presença e, de que gostaria de me ver novamente. No momento, senti o rosto queimar e, trêmulo, balbuciei que logo, logo, eu a estaria visitando. Jogando-me o sorriso mais encantador que eu já tinha recebido, virou-se e, saiu correndo, com as tranças balançando, ao sabor da aragem da noite.
V
Depois dessa encantada noite e dos momentos vividos de magia, passamos a nos ver regularmente, até o dia em que consentimos em sermos namorados. Da parte dos nossos pais só houve alegria e palavras doces nos incentivando a nos amarmos cada vez mais, até o noivado e sua concretização: o casamento.
Namoramos por dois anos e, numa tarde outonal, à sombra deliciosa de um jatobá, ficamos noivos. Após um beijo ardente, coloquei em seu dedo anular da mão direita a aliança de ouro e, ela, com os olhos lacrimejantes, retribuiu o meu gesto e, num abraço forte, juramos amor eterno. Nosso noivado foi lindo, majestoso. Invariavelmente, nos víamos dia sim, dia não. A cada encontro nos supríamos as almas de beijos e carinhos ternos. Nunca houve de nossas partes. Volúpia ou lubricidade: respeitávamo-nos, e tínhamos decididos de que a concretização sexual só viria após o enlace nupcial. No momento especial só tivemos como testemunha um Bem-te-vi, que, sobre o galho da esplendorosa árvore, dizia-nos a todo instante: Bem-te-vi ... Bem-te-vi. Por incrível que possa parecer essa avezita nunca mais deixou de nos fazer companhia e, em todo lugar que íamos, nas redondezas do sítio ele fazia questão de nos acompanhar e cantar o seu canto característico: Bem-te-vi... bem-te-vi... bem-te-vi.
Amamos o nosso companheiro e testemunha de nossos carinhos até o dia em que...
VI
Até o dia em que aconteceu a maior tragédia de minha vida. Até o dia em que me senti o ser mais amaldiçoado da face da Terra. Até o dia em que desisti de viver como homem para ser um pária... um João-ninguém... um molambo e, tudo aconteceu como um raio numa noite escura... num relance deixei de ser feliz para ser infeliz, quando...
Era uma tarde fresca, amena, convidativa para um passeio na mata, onde corria um riacho que formava uma cachoeira linda com suas águas cristalinas. Tínhamos, na véspera, combinados de que iríamos nadar naquela tarde. Já tínhamos feito isso outras vezes e, sempre, nos regozijávamos com os banhos frescos, que, no início, as águas tinham a magia de eriçar os pelos de nossos corpos, causando-nos um bem-estar maravilhoso. Sentados na rocha por onde a água escorria em borbotões e espumas, conversávamos sobre os preparativos do casamento a realizar –se no mês vindouro e, absortos, não vimos uma cobra, mais precisamente uma jaracuçu, que identifiquei pela sua coloração e forma. Quando, a vi, foi tarde demais, pois, num bote certeiro ela mordeu o tornozelo alvo e delicado de minha amada. Angustiado, terrificado, levantei-me de um salto para matá-la e após socorrer minha doce noiva. Foi apenas um segundo ou menos, para a desgraça nos atingir. Ao tentar matar o monstro escorreguei na rocha e bati com a cabeça numa pedra, desmaiando, sem antes, porém, escutar ao longe ( embora estivesse num galho de um ingazeiro sobre o rio), o nosso companheiro cantar: bem-te-vi... bem-te-vi... bem-te-vi ...
VI
Estava já, sentado frente ao seu caixão, desde a manhã, quando ele chegou da Santa Casa. A sala estava repleta. Por todo lado se ouvia choros, choramingos e palavras de dor. Seus pais agonizavam numa dor sem tamanho pela perda de sua filha querida, que, tão jovem, deixou esse mundo. Meus pais tentavam me consolar com palavras amenas, mas, a dor que eu sentia era tanta que eu não os ouvia. À tarde, quando o féretro saiu para o cemitério municipal, eu me enveredei pela mata e fui despir minhas dores na cachoeira. Lá, permaneci até o dia seguinte, quando meu pai e alguns amigos foram me buscar. Como um bêbado, deixei me levar e, cambaleando cheguei à minha casa. Por alguns dias, não saí do quarto, nem ao menos para me alimentar e, quando o fazia era para ir fazer as necessidades e, voltava taciturno, para o meu refúgio.
VII
A vida tinha perdido o sentido para mim. Vivia como um autômato. A dor da perda irreparável tomava conta do meu corpo e ia, pouco a pouco, minando minhas forças e a vontade de viver. Passados alguns dias da tragédia é que eu fiquei sabendo de como ocorreu tamanha desgraça. Uma tarde, enquanto eu ficava à margem da estrada, tendo como companheiro solitário o fiel Bem-te-vi, meu pai me contou do ocorrido, falando que, como nós estávamos demorando pra chegar e já estava ficando escuro, chamou o seu amigo Manoel Belarmino e, juntos foram até a cachoeira, pois sabiam que era lá que sempre íamos. Grande foi a surpresa que tiveram quando me viram desmaiado sobre a pedra e a Aninha deitada e se contorcendo de dor. Após uma rápida inpeção pelo local depararam com a fera numa toca e a mataram sem piedade. Imediatamente foram buscar ajuda e nos levaram para a Santa Casa. Eu permaneci duas noites desacordado, voltando à realidade na manhã do velório da querida noiva, quando a tragédia já estava consumada.
Minha noiva morreu e, eu, não pude socorrê-la.
Desde então, tornei-me um desgraçado e, peço a Deus que me leve o mais breve possível ao paraíso, onde, certamente, ela estará.
Debruçado sobre o caixão disse-lhe baixinho: “ Querida Aninha, perdoe-me e, continuei, num débil sussurro... Bem, não te vi ser mordida pela cobra e, nem te socorri!”
Em algum lugar o nosso companheiro trinava : bem-te-vi... bem-te-vi... bem-te-vi.
ALDO
08-04-19
segunda-feira, 8 de abril de 2019
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