segunda-feira, 15 de abril de 2019

O LIVRO DO DESASSOSSEGO - 122.


A ideia de viajar nauseia-me.
Já vi tudo que nunca tinha visto.
Já vi tudo que ainda não vi.


O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das ideias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, e o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando.
Paisagens são repetições. Numa simples viagem de comboio divido-me inútil e angustiadamente entre a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro.Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-me.
Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei.
A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.
Ah, viagem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida. Mas aos que pensam e sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios não os deixa dormir nem acordar.

De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como de um sono cheio de sonhos- uma confusão tórpida, com as sensações coladas uma às outras, bêbado do que vi.
Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas os desejos de os ter.
Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas. E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito. Uma ou outra vez tenho ido. sempre opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando estou de volta.
Quando se sente de mais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo.

O LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
COMPANHIA DAS LETRAS
PG. 143

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