segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O CACHORRO!


A noite estava fria e escura.
Sentado na sarjeta eu chorava copiosamente o nunca ter sido.
As nuvens riam de mim toda vez que passavam sobre a praça deserta.
Nuvens escuras e carregadas de granizos me ameaçavam como se eu fosse um bandido.
Um instante atrás eu tinha tentado o suicídio riscando o meu peito com um canivete.
No último segundo, afrouxei a lâmina e me acovardei feito um rato esquálido.
Já, estava por horas abandonado na sarjeta quando sem mais nem menos ele chegou.
Chegou sorrateiro; chegou como uma sombra, chegou como um salteador.
Sem maiores trejeitos sentou-se ao meu lado e pôs-se a lamber a ferida do meu peito.
Quando prestei atenção vi que se tratava de um cachorro sujo e maltrapilho, como eu.
Não consegui distinguir sua raça, mas, se nem eu mesmo sabia quem era, como saber dele?
Tina o pelo ralo e muitas feridas pelo corpo e dele desprendia um cheiro nauseabundo.
Quando abriu a boca para me lamber os pés vi que lhe faltavam os caninos.
Mesmo assim, desdentado, me deixou trêmulo de pavor e, lhe sussurrei débeis lamentos.
Enroscado em minhas pernas tentava agasalhar-me e quem sabe devolver-me a vida que se esvaía.
Titubeante, rocei minhas mãos feridas em seu dorso e pude constatar que ele era dócil.
Para a minha felicidade tinha um ente que ainda me transmitia carinho e fiquei feliz.
A madrugada silente chegou e nos encontrou abraçados: dois desgraçados numa noite triste.
Sabendo que o "amigo" estava com fome tomei do canivete e abri minhas entranhas.
Num repente tirei os rins e lhe dei de comer; o que ele o fez com enorme satisfação.
Em seguida tirei o fígado ainda quente e sanguinolento e o atirei em sua bocarra molhada.
Durante alguns minutos, enquanto eu agonizava ele lambia os beiços e sorvia o sangue fervente.
Ainda, não satisfeito, mordeu-me o peito e retirou o coração ainda pulsante e o degustou.
Não ralhei com sua ousadia, pois, o coração já não mais me pertencia desde o dia...
Desde o dia em que a mulher de minha vida me abandonou por outro amante mais jovem e sedutor.
Feliz por ter um verdadeiro amigo que me ajudou a sair deste mundo e passar para o outro não vi.
Não vi quando por nós passou uma cadela toda sensual e oferecida mostrando estar no clímax do cio.
Imediatamente o meu então "amigo" me abandonou à própria sorte e saiu atrás da cadela vira-lata.
Sozinho, fui definhando até me esparramar no chão sujo e me contentar com a sarjeta como urna mortuária.
Uma nuvem negra passou por mim quando eu já era um cadáver vazio, oco, sem entranhas.
De tudo o que passei ficou a incerteza do ditado: " O cachorro é o melhor amigo do homem".
Para mim o certo é : " O CACHORRO É O MELHOR AMIGO DO HOMEM... ATÉ QUE PASSE À SUA FRENTE, UMA CADELA NO CIO".


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